Os corações humanos são
coisas interessantes de se analisar. Eles são órgãos e ao mesmo tempo símbolos.
Eles vivem dentro, mas saem pra fora numa frequência enorme. Eles vivem
batendo, intactos, bobeando o líquido da vida. No entanto, se despedaçam no chão
mais vezes que brinquedo de criança. É como se a terra fosse um imã
irresistível, e o coração não tivesse outra escolha senão atirar-se nela.
Cacos. Vejo muitos
cacos no chão. Alguns eu sei ser de ontem, e que não os recolhi por pura
preguiça. Outros sei ser de hoje, e que ainda me resta fôlego pra praguejar-me
por tê-los deixado cair. Estou aqui sentada na calçada, parecendo uma mendiga,
pedindo uma esmola de amor a qualquer transeunte. Aí, se alguém passa e oferece
esmola, fico triste porque não me olha nos olhos. Como se dá amor sem olhar nos
olhos? Eu não compreendo isto. Parece que entendo grego onde todos falam
português. Será que tantos cacos assim vão um dia ser recolhidos? Eu também
quero saber. Se souberes a resposta, ligue-me imediatamente. É um caso de vida
ou sentença de morte. Eu poderia gastar essas moedas comprando uma pá e uma
vassoura. Seria mais útil do que mendigar amor sem olhares sinceros.
Mas isso aqui já virou
discurso de melancolia. Não estou falando de uma desilusão com outrem, estou
falando de uma desilusão comigo. Eu vivo quebrando meu coração, e deixando os
cacos soltos por aí. Será que é vontade que eu pise em algum, me corte e sinta a
dor do coração que faleceu por culpa minha? Talvez seja. Deus que me livre!
Medirei esses desejos inconscientes, pois eles nada me acrescentam de bom. Quero
dizer apenas que o coração é uma coisa interessante, que leva a pensamentos
interessantes, que é a casa da alma e por isso nos engana fácil com sua carcaça
de bom moço. Iludidos são aqueles que acham que do coração obterão respostas
precisas e universalmente verdadeiras. Vá com calma, meu jovem. Nem sempre é
possível ver este fenômeno. É no coração que alimentamos a dor; também o
perdão. É no coração que colocamos a ansiedade pra funcionar, também nele que
abraçamos a paciência querendo que ela se sente como a menina obediente que
deve ser. Ele é o palco das coisas mais profundas e ao mesmo tempo superficiais
da vida. Sem ele seríamos só um pedaço de carne rodeada de ossos, com uma
pequena massa cinzenta acima coordenando tudo. Vida sem graça é o que teríamos.
Mas, temos coração, não temos? E isso deixa tudo mais complexo e vivo. Pro bem
ou pro mal ele nos serve, pra alegria ou tristeza ele nos completa. Ele é que
diz se eu continuo conscientemente viva ou não. Aí, surgimos eu e você! Com
nossas mãos grandes e desastradas deixamos o coração cair no chão. Olha só que
desastre. E a gente ainda é prepotente e acha que sabe viver.
Não sei concertar um
coração. Não sei como se remenda pedaços, mas talvez um dia eu aprenda. Gosto
de aprender. O mais importante é saber que ficar sentado pedindo esmola não
adianta nada. Os cacos não vão se reunir sozinhos e desfazer a bagunça que eu
criei. Eles continuarão lá, me lembrando a cada vez que passar por eles que
preciso tirá-los dali, antes que machuquem mais alguém além de mim. Diante dos
anos passados, adquiri minhas próprias técnicas. Uma delas é blindar o coração
contra aquilo que me faz querer deixá-lo cair. Sim, blindar. Rodeá-lo de um
material forte e capaz de proteger de grandes quedas. Esse material, no meu
caso, seriam palavras. Rodeei meu coração com palavras tão eficazes e
reforçadoras que ele hoje está mais forte e corajoso. Está até querendo
aprender a dançar, cantar, orar, saltar. Ele viu que está vivo, e que os cacos
fizeram dele um projeto mais intenso. Sou extremamente boba, ao ponto de nunca
ter percebido que nas palavras está o poder da fé. O poder do crer. O poder de
confiar nas coisas que eu não vejo nem sei se existem. O meu coração hoje está
fantasiado com uma roupa azul cheia de cacos reluzentes. Diz ele que é pra
mostrar ao mundo e ás pessoas que é possível vencer as quedas dolorosas. Diz
ele que os cacos são seus troféus de batalha.
Um dia eu já me sentei
triste na calçada, hoje eu me levantei dela. Ouvindo uma voz interior eu soube
que por mais sábio ou enganador que seja meu coração, preciso cuidar dele. E
ainda que ninguém me ouça, me estenda a mão, me olhe nos olhos, me faça sorrir
eu estarei pronta pra mostrar um saquinho cheio de cacos. Não é mórbida essa
atitude, é salvadora. Por vezes parece que estamos rodeados de uma imensa
escuridão, de um silencio ensurdecedor, de um calafrio aflito, mas eu sei que
nada disso é real. As palavras blindam meu coração como se um escudo de 360°
graus estivesse sobre ele. Não há brechas, há portas, as quais só eu tenho a
chave. Agora se você me der licença, vou indo. A noite está chegando, o frio
inundou minhas têmporas, e tenho ainda muitos cacos de coração pra recolher...
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