Era uma vez uma pequena criança de cabelos azulados. Esta costumava ficar avermelhada sempre que a elogiavam, sempre que a olhavam demais, ou pelo menos sempre que se via observada aos mínimos detalhes. Constantemente seus olhos brilhavam ao ver os pais juntos, de mãos dadas pela estrada por onde vinham da feira do bairro pobre em que viviam. Bastava um olhar cúmplice entre eles e a criança transbordava de contentamento, mas apesar disso era uma criança "estranha", ou pelo menos era assim que a viam. Os vizinhos que a chamavam para brincar recebiam quase sempre um não, acompanhado de um rubor meigo e afeiçoado à suas bochechas. Não parecia nada comum ter cabelos azuis, um rubor que não a deixava nem por um instante, ou quase brilhar de alegria por ver os pais dando-se as mãos. A criança geralmente olhava pro ambiente, mas se as pessoas a olhassem, disfarçava, tentando demonstrar não estar atenta a nada. De tão engraçada, a situação se aproximava a uma história cômica em quadrinhos. De todas as crianças, ela era a que mais queria não ser percebida e que mais frequentemente o era.
Nos pequenos momentos em que falava alguma coisa, sempre era uma fala pouco audível, sussurrada, rouca e feito anjo ela voava pra longe do interrogador, só ficava se fossem seus pais, só sorria se fossem seus pais, e se eles dessem as mãos ela dormia com um sorriso de orelha á orelha. Nem eles mesmos se atreviam a perguntar a ela o porquê. Talvez ela fosse só uma criança cheia de manias, e todas aquelas coisas cotidianas lhe parecessem sombrias com exceção dos gestos de intimidade e carinho.
Certo dia essa criança acordou incomodada, algo em sua cabeça girava e girava, e ao olhar no espelho o susto fez-lhe derrubar uma lágrima. Seus cabelos azuis estavam cor de rosa. 'Como foi que aconteceu isso?' ela se perguntava, enquanto remexia com fervor as mechas do cabelo ex-azulado. Correu para a cozinha da casa, tocando as paredes para segurar-se, sem abrir direito ainda os olhos, mas isso mudou no instante em que por algum equívoco do passo tropeçou numa cadeira desavisada em seu caminho. Um pequeno grito de dor formou-se na gargante, mas não conseguiu direcioná-lo para o mundo real. E num segundo a mãe que ouvira o som da queda abriu caminho e pegou o pé da pequena criança, exclamou pequenos sons, que a fizeram interpretar que sua mãe estava preocupada com o estrago que os filetes de madeira poderiam ter feito em seus dedos frágeis, mas não pôde afirmar se realmente era esse o motivo dos sons, pois alguém atrás de si afagou-lhe os cabelos fazendo-a erguer a cabeça. E então ela o viu: seu querido pai com olhos semi-cerrados numa expressão de sono inacabado e com uma marca de travesseiro na bochecha esquerda. No mesmo instante ele a ergueu, e a mãe ainda inquieta mexia em seu pé como que para certificar a presença ou não de dor. A menina gemia, mas era tão baixo que de começo ela mesma não ouviu. Eles a levaram dali, e antes de chegar à cama do quarto dela, a pararam em frente ao espelho, para mostrar-lhe sua beleza matinal e seu leve azar em ter machucado o pé tão cedo quanto poderia imaginar ser. No espelho não havia uma menina de cabelo rosa, mas novamente uma menina de cabelos azuis. Ao vê-los soltos e esvoaçantes sorriu tentando não deixar exposta a expressão boquiaberta de seu segundo susto naquele mesmo dia, naquela mesma manhã, naquele mesmo quarto. Pensando com seus botões, cogitou ter sonhado ainda despertando, e só assim poderia ter visto mudar a cor de seus cabelos frequentemente da cor do céu.
Por fim, os pais entreolharam-se, e a criança nada pôde dizer, apenas sorriu... Eles a olharam com um olhar que poderia tê-la deixado vermelha de vergonha, mas diferente do costume, ela não esboçou cor alguma na face. Simplesmente, esfregou as têmporas e pediu algo pra comer. Os pais que estavam também desejosos de algo para forrar o estômago deixaram-na deitada, repousando o pé magoado, e disseram-lhe que esperasse ali. E foi o que fez, para que um minuto após, ela visse o pai adentrar o quarto com uma bolsa de gelo na mão, e uma bandeja com chocolate quente e bolachas na outra. A menina endireitou-se e viu novamente seu semblante no espelho, e pasmada quase engasgou, seu cabelo estava rosa novamente. Piscou uma, duas, três, quatro vezes e lá estava o azul nos fios rebeldes. Ela viu sua mãe entrar ao quarto e chamou-a para mais perto. Os três então conversaram alegremente, mas a menina interrompeu-os para finalmente perguntar: "Vocês veem meu cabelo de que cor agora?", e eles com um sorriso cúmplice responderam: "Eles estão da cor da sua felicidade, se quiseres que seja azul apenas precisa ser você mesma, e se quiseres que seja rosa, apenas vença seus medos". Ela não entendeu bem, mas contentou-se com o beijo no topo da cabeça que ganhou de ambos.
A parir daquele dia ela passou a ter duas cores de cabelo, sempre que ruborizava, brilhava em sorrisos e se escondia podia ter certeza que o espelho lhe mostraria um azul escarlate. Porém, sempre que falava, olhava e agia nada era mais rosa que aqueles cabelos finos e mal-comportados.
Era uma vez, o sonho de uma criança comum, que esperava ser adotada no dia seguinte, e que diariamente lutava com a tentativa de preencher seus desenhos de igual proporção com azul e rosa. Nem sempre vencia, mas a esperança percorria seu coração até que a noite viesse e lhe trouxesse o sonho de todos os dias, nele ela tinha cabelos azul e rosa, dependendo da intenção e da emoção.
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