O lado bom da solidão

Estar solitário demanda coragem. Ser bondoso demanda uma dose e meia de solidão. A solidão gera bondade em casos específicos e a coragem é uma única medida capaz de contemplar todas as investidas alimentadas tempo após tempo. Não será mera coincidência se encontrar-se no meio dessas palavras, pois à medida em que as vou escrevendo encontro a mim mesma de igual modo.



Quem dera soubesse explicar a relação estreita que se estabelece entre a solidão de alguns poucos seres e sua bondade sobressaltante. Uma das mais nobres horas é aquela na qual se percebe em pessoas bondosas o lampejo de solidão mais cálido que se pode inferir, ali, saindo-lhes do fundo do olhar.
Na ânsia de não estar sozinho, os seres vão caminhando, alimentam pequenos sabores que encontram nas esquinas, deixam as roupas serem ensopadas pela chuva, e caminham, apenas caminham... Como se o alvorecer ainda fosse perdurar... Como se a órbita de tudo fosse o estar em silêncio, o vagar descompasso de estar desacompanhado. Na ânsia de serem dois ou três, o solitário vai ziguezagueando e não há nada mais a fazer quando o rapaz que traz o jornal chega e bate à porta, pois sabe-se enfim que o momento terno do nascimento do sol chegou, e mais um dia será percorrido com olhos famintos por explicações. A bondade, meus amigos, é a única que sobra. Ela parece o café da manhã dos solitários, e por isso mesmo está sempre à sua porta.
Quando os tempos eram outros a bondade parecia artigo requisitado, mas e agora? Não sobrou nada, apenas a esperança de que ela surja entre tantos mil nascimentos. Homens vão se encurvando na estrada, e parece que os pesos que caem sobre seus ombros decorrem do tempo em que ficaram ali esperando surgimentos. No entanto, nada encontraram. Nem o passar dos anos lhes trouxe algo novo, apenas a boa e velha parceira: a solidão.
Os dias avançam lentamente para quem vê tudo do banco na cozinha de casa, ou do quarto, ou da janela que fica no sótão. Parece que fileiras de pensamentos se amontoam a cada instante em nós, e ninguém se atreve a perguntar o motivo de tamanha confusão. São só os muitos eu's conversando entre si, e dizendo previsões para o momento seguinte. Nessas previsões aparecem os ímpetos da bondade. Como luz que nasce do nada, irradia todo o ambiente e insiste em ficar. Quem experimenta a solidão, parece estar mais perto de entender a beleza de ser bom, mesmo que ninguém haja para ver o movimento, é ali que se instaura a verdade, tudo que é autêntico, singelo e acalentador. A bondade é o  chapéu que os mais solitários seres manuseiam para capturar a felicidade.

Em algum lugar dessa terra encontram-se pessoas isoladas, enclausuradas em si mesmas, atrás das janelas de um trem ou mesmo de uma cafeteria. Em algum lugar elas conversam seus monólogos, pensam as cenas milhares de vezes e continuam a resgatar os sonhos um dia deixados para trás. Em algum inóspito lugar de suas mentes está o doce da bondade, querendo sair. Nos olhos acinzentados pelo tempo encontrei as mais belas sentenças de bondade, que nem o próprio tempo usurpou ou corrompeu. Sim, isso tudo existe, é tudo real, é tudo uma frágil flamula da vida, que alimenta meus olhos e ouvidos, deixa-me inebriada de contentamento...

As pessoas, sozinhas ou não, não costumam ser boas. Mas algumas belas almas vêm recheadas de tal virtude, à ponto de não querermos soltá-las de um abraço. Ali dentro delas, onde só há isolamento, brota a intenção do belo, do mais nobre e singelo estado de esplendor. Essas amadas pessoas, por mais desencontradas que estejam, possuem dentro de si a chave que abre todas as portas, a resposta para todas as perguntas e a possibilidade de criar todas as outras. O lado bom da solidão se encontra nelas. E a solidão bondosa é sua carta de recepção.
Lá, bem lá, onde tantos já despencaram seus medos, onde tantos já despejaram seus anseios... Nasce a capacidade de agir por bem querer ou de simplesmente ser. Lá, na alma, onde machucaram sem permissão, deixando manchas amarronzadas, existe o brilho da paixão pela bondade. Dali emerge tudo. Para o exterior tudo se transporta, já não sabemos nós o que fazer. Agradecer é mínimo, um beijo demos talvez, se a vergonha não assombrar, se soubermos no exato momento que a chance outra vez não chegará. E fazer a bondade acontecer, sim, demanda de nós o estar sozinho, pois é aqui dentro que as coisas são mais reais. Se já vem de dentro mal, de igual modo morrerá... Mas se de dentro provém bem, as coisas mudam de lugar.

O sofrimento carregado, a devastação e o desprezo alheio, trazem para muitos a motivação para a bondade. Para agir com o bem em troca. O oposto se torna aquilo que mais atrai, e a sentença diferenciada a meta suprema da vida. Quantos já saíram hoje com seus corações entorpecidos de dor, e ao virarem a esquina deixaram uma chama de bondade para que os outros aquecessem as mãos. O mundo é frio, é desesperador, e quando vemos algo bom sentimos que vale a pena todo o resto. E vale mesmo. Porque não se precisa de muito, só se precisa de um pouco que faça valer os esforços. O sorriso é fácil de desabrochar quando a solidão que emana dos poros produz uma chuva torrencial de bem feitorias. A bondade anda junto com a solidão. De mãos dadas. De queixo erguido. De coração quase saltando pela boca, só esperando que o alvorecer demore um pouco mais.

Eu sou solidão e até então não havia visto lado bom, coisa que cheguei agora a conhecer... Não sei ainda dizer como, onde e nem o porquê, mas o tempo dirá.

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